terça-feira, novembro 10, 2009

GEISY, A REVOGAÇÃO DA EXPULSÃO, O LINCHAMENTO DA LÍNGUA, O CRIME E O DECORO do Reinaldo Azevedo

O silêncio covarde sobre aquela agressão, que apontei aqui desde o primeiro dia, foi finalmente quebrado. Dada a decisão da universidade de expulsar Geisy, o Ministério da Educação encaminhou pedido de informações para a Uniban; a Secretaria Especial das Mulheres acionou o Ministério Público para investigar crime contra os direitos humanos; partidos políticos, parlamentares, OAB e UNE também se manifestaram. Folgo com a reação, mas não deixo de apontar: vieram tarde. A ocorrência original já era de extrema gravidade. Foi preciso que a humilhação chegasse ao requinte para essa gente acordar. Reinaldo Azevedo

Na íntegra:

GEISY, A REVOGAÇÃO DA EXPULSÃO, O LINCHAMENTO DA LÍNGUA, O CRIME E O DECORO

terça-feira, 10 de novembro de 2009
A notícia nos sites e blogs ontem não deixava dúvida: "O reitor da Universidade Bandeirante, Heitor Pinto, determinou a revogação da expulsão da estudante de Turismo Geisy Arruda". Uau! A Uniban, em matéria de revogação de expulsões, vive mesmo num regime presidencialista, não é? Eu diria que ele chega a ser ditatorial, já que a decisão de botar a garota para fora, de punir a vítima, havia sido assumida, ao menos oficialmente, por alguma coisa que deve ser parecida com o que, numa universidade, é um Conselho Universitário. Entendi também que esse "conselho" tem autonomia para gastar uma nota preta para satanizar Geisy em anúncios no jornal e na televisão. Mas a ninguém ali ocorreu, sei lá, pegar o telefone: "Alô, Doutor Pinto, o que o senhor acha disso?" E olhem que o homem não é fraco, não, como veremos.

Até o deputado Vicente Paulo da Silva (SP), o notório Vicentinho, do PT, resolveu dar as caras. É considerado a maior personalidade formada na Uniban — de quem foi garoto-propaganda junto com outro petista, Luiz Marinho, atual prefeito de São Bernardo, cidade em que fica a unidade que protagonizou aquele espetáculo deprimente. Pinto, que já foi vice de Paulo Maluf quando este disputou o governo de São Paulo em 2002, chegou a ser cotado para vice de Vicentinho quando o deputado tentou, sem sucesso, a prefeitura de São Bernardo, em 2004. Depois desistiu. Mas a gente vê que é um homem sem preconceitos.

Eu poderia, digamos, recorrer a Raízes do Brasil par explicar o que acontece no país. Ou a Casa Grande & Senzala. Se recuasse um tanto mais na história de que a  obra se ocupa, talvez chegasse a Os Donos do Poder. Mas seria gastar vela boa demais com pessoas muito, como direi?, vivas. Vicentinho anunciou: "Estou agendando uma audiência com o reitor Heitor Pinto. Pedirei que ele revogue essa decisão equivocada. A Uniban não devia ter arrumado essa confusão. Acredito que isso não tenha passado por ele. Deve ter sido uma decisão das instâncias menores". Vicentinho, em suma, emprestava para seu amigo a desculpa essencial de todo petista: "Eu não sabia".

Então o reitor não sabia? Pois é… Eu sabia que ele era ligado a alguma entidade que reúne universidades privadas. Descobri que é diretor da Associação Nacional das Universidades Particulares (Anup). Não é possível que alguém ocupado em liderar todo um setor ignore o que se passa dentro da sua casa. Entrei no site da entidade e… Bem, eu me espantei. Muito mesmo.

O primeiro texto que encontrei lá, até salvei um PDF para guardar como curiosidade, dá conta das críticas de Pinto ao IGC, o tal Índice Geral de Curso, elaborado pelo MEC, com base no tal exame do Enade — a prova que poderia ser positiva e  que se transformou numa estrovenga patrulheira. Ele critica? Até aí, muito bem. Leiam trechos do  que vai no site de uma entidade que reúne nada menos do que universidades:

Para Heitor Pinto Filho, um dos diretores da ANUP, o índice divulgado pelo MEC nesta semana é uma avaliação política. Em entrevista ao Correio Braziliense, o reitor afirmou que o levantamento é mal feito porque, entre outras coisas, não inclui todas as instituições do país.
De acordo com a matéria do Correio, o reitor Heitor lamentou a não participação de todas as IES na avaliação, fazendo referência à recusa da USP e da UNICAMP de não se submeterem ao SINAES. "Ou entra todo mundo, ou nenhuma", afirmou ele.
Na entrevista, o diretor da ANUP também defendeu uma avaliação regionalizada respeitando as características de cada estado. "Um país com a extensão do Brasil não pode ter um índice geral como esse. Temos particularidades", destacou ele.

Comento
Ai, meu Jesus Cristinho! Não é "mal feito", e sim "malfeito", embora este não seja o pior mal feito (sacaram a diferença?) à língua em trecho tão curto. Como explicar isto: "fazendo referência à recusa da USP e da UNICAMP de não se submeterem ao SINAES". Notem: a USP e a Unicamp não se recusaram a NÃO SE SUBMETER; elas se recusaram a SE SUBMETER.

A Anup leva pau na prova de redação. Também fiquei comovido com a tese de Pinto: a criação do índice regional. Ou estou entendendo errado, ou ele está defendendo que certas regiões do país não podem competir com outras. Deixe-me ver: um curso A na região X poderia ser C na região Y, é isso? Entendo… Alguma chance de a redação analfabeta que está em negrito ser considerada correta em alguma região do país? Não!

O que se passa com a universidade brasileira?

Mas volto lá aos livros. Observem que pouco importam leis, instituições, civilidade, estatuto, o diabo a quatro. Vicentinho se dispôs a resolver a questão na base das relações pessoais, de amizade, de intimidade. Eis aí parte da miséria brasileira — inclusive a moral. Insisto desde o primeiro dia: a questão é mais séria do que parece. Décio Lencioni Machado, aquele senhor da área jurídica e do cabelo duro de gel, o mesmo que concedeu entrevistas acusando Geisy de mostrar "as partes íntimas" para os inocentes e tentados rapazes da Uniban, não se deu por achado. Afirmou que Pinto tomou a decisão "como pessoa física". Uau! A maior autoridade da Uniban não é um reitor, mas uma "pessoa física". Vai ver é o entendimento que se tem por lá de "autonomia universitária". Machado é membro do Conselho Estadual de Educação. Milton Linhares, vice-reitor, é membro da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação. Estamos feitos.

Fim do silêncio
O silêncio covarde sobre aquela agressão, que apontei aqui desde o primeiro dia, foi finalmente quebrado. Dada a decisão da universidade de expulsar Geisy, o Ministério da Educação encaminhou pedido de informações para a Uniban; a Secretaria Especial das Mulheres acionou o Ministério Público para investigar crime contra os direitos humanos; partidos políticos, parlamentares, OAB e UNE também se manifestaram. Folgo com a reação, mas não deixo de apontar: vieram tarde. A ocorrência original já era de extrema gravidade. Foi preciso que a humilhação chegasse ao requinte para essa gente acordar.

A revogação da expulsão, ademais, não anula os crimes que se cometeram na Uniban, e seus responsáveis têm de ser identificados e punidos. Se a sindicância  serviu para punir a vítima, então sindicância não é, mas farsa. Que a Polícia entre no caso. O Ministério Público, agora acionado, não precisa nem da concordância de Geisy para atuar. Talvez não dê para consertar a língua portuguesa da Anup. Mas se pode tentar consertar a moral torta dos arruaceiros. Por que não com a lei?

Para deixar claro
É evidente que minhas críticas não se estendem a todos os alunos da Uniban. Os que não participaram daquela baixaria não têm por que se sentir atingidos  — e seria muito bom, então, que a maioria silenciosa que não aprovou o linchamento moral desse um jeito de se manifestar.

Para concluir, lembro a alguns que quem adota um princípio não se impressiona com interveniências de superfície. O meu, já disse, entende que o apedrejamento e a eleição de bodes expiatórios são praticas que devem ser banidas da convivência civilizada. Pouco se me dá o que Geisy vai fazer depois. Ainda que venha a posar nua, como alguns sugerem — a ilação parece revelar o mesmo preconceito que resultou na ação da turba —, isso não tornaria menos estúpidos os que participaram daquela catarse de misérias. Para pensar a questão no seu limite: a qualidade do cadáver não muda o espírito do homicida contumaz. Reitero: acho indecente especular se ela colaborou ou não com seus algozes.

É evidente que cada situação comporta uma variação de estilos de vestimenta dentro de uma faixa do que é considerado o decoro de um determinado ambiente ou ocasião. Já contei aqui que aluno meu não mascava chiclete ou ficava exibindo pêlo do sovaco quando eu dava aula. Serei o último a acatar o vale-tudo. Nem tudo vale, não, senhores! Mas linchadores e candidatos a estupradores não têm autoridade para falar em decoro.

Na hierarquia da civilização, o criminoso não dá aula de moral ao indecoroso. Essa é boa! Podem espalhar. Pena que não dê tempo de entrar no próximo livro.

PS - Alô, Anup! Hora de cuidar da inculta e bela num site que reúne universidades. Por enquanto, ela vive aí a sua fase sepultura. Que tal ambicionar o esplendor?

Do Blog do Reinaldo Azevedo

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