domingo, novembro 23, 2008

Onda de violência sexual contra crianças reflete perda de poder do homem na sociedade

Perversidade masculina

Onda de violência sexual contra crianças reflete perda de poder do homem na sociedade

Rinaldo Gama

Uma reação à ascendência social da mulher, num processo psíquico provocado pela crise do poder masculino que se manifesta na prática de abusos sexuais contra crianças porque elas, devido a sua natural fragilidade, não são capazes de opor resistência. Assim o psicanalista Joel Birman define o crescimento da pedofilia e dos crimes com indícios de violência sexual contra crianças que vem se registrando no País (no Paraná, por exemplo, em apenas dez dias ocorreram quatro assassinatos de meninas, com essas características). Para Birman, de 62 anos, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro e professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, o problema tomou maiores proporções com o surgimento de um novo modelo de sociedade, no qual a mulher disputa com o homem um lugar de destaque, pondo em xeque a "virilidade" social masculina. "Estamos falando, portanto, de algo que diz respeito essencialmente ao universo do homem", frisa Birman, que chama a atenção para outro aspecto, ainda que "secundário", da questão no Brasil: "Nossa sociedade erotiza muito a criança", diz ele. Classificada, em termos psicanalíticos, no rol das perversões, a pedofilia encontra um facilitador quando existem condições sociais adversas à criança: "Quanto mais precarizadas são as famílias, quanto mais desorganizadas elas são do ponto de vista sociológico, maiores as possibilidades de ocorrência de abusos sexuais contra meninas e meninos", alerta Joel Birman.

NOVA ORDEM FAMILIAR

"O crescimento do número de abusos sexuais contra crianças praticados inclusive por seus pais é um problema que faz parte do mundo pós-moderno, pós-patriarcal em que vivemos, no qual a família nuclear burguesa entrou em processo de desconstrução. Nessa família, o pai já havia perdido parte de seu poder: a mãe era a figura pivô de toda a relação da criança com o mundo e esta ocupava um lugar fundamental, como matéria-prima simbólica do futuro da nação. Claro que a mulher, como sabemos, pagava um preço muito alto por deter aquele poder. A partir dos anos 1950 e 60, quando a mulher deixou sua posição exclusiva de mãe e passou a disputar com os homens um lugar no mercado de trabalho, um lugar social diferente, a família se modificou. A ordem familiar até então conhecida já não funcionava mais - surgiu, então, a família pós-moderna, com seus novos papéis. No espaço público, os homens passaram a se sentir ameaçados pela ascendência social da mulher. Curiosamente, o que se verifica é que o abuso sexual contra crianças cresceu a partir desse momento. Claro que isso já existia antes, mas é significativa a dimensão que tomou há cerca de cinco décadas. Todos esses casos recentes de que temos notícia são sintomas de que o limiar da ordem familiar burguesa foi ultrapassado e as crianças se transformaram em objeto de desfrute sexual.

FRAGILIDADE

"O que leva o pedófilo a querer abusar de uma criança é que ela é um ser indefeso. Não opõe resistência ao desejo do pedófilo. O que o pedófilo quer é um corpo para realizar seu desejo sem que se imponha nenhum tipo de resistência do objeto sexual. Numa relação com uma mulher adulta, ele pode ter resistência - como a própria afirmação do desejo dela. Ora, o pedófilo não suporta a manifestação do desejo sexual de seu objeto. Ele quer ter à mão um ser passivo, que possa dominar facilmente, inclusive com sua força física, para que fique à mercê de sua vontade. Você pode imaginar que, numa sociedade onde a mulher se torna mais ativa, como na nossa sociedade contemporânea, na qual ela quer disputar um outro lugar social, o homem, o pedófilo não suporta essa nova realidade - de uma mulher que resista. A pedofilia é, assim, ao mesmo tempo, uma agressão à criança e uma reação contra a maior afirmação do poder da mulher na nossa sociedade.

HOMOSSEXUALIDADE E REPETIÇÃO

"Os homens que abusam de crianças têm um problema de afirmação de sua virilidade. E o pedófilo que abusa de garotos, significa o seguinte: o menino penetrado é uma projeção dele mesmo, que revela, assim, uma questão relacionada a sua identidade sexual, quer dizer, existe aí um componente da sua homossexualidade. De qualquer forma, é importante lembrar de um aspecto que costuma ser registrado pela literatura que trata desse assunto: é muito comum que o adulto que abusa sexualmente de uma criança tenha sido, também, abusado na infância. O que há, assim, é uma espécie de reação de resposta a uma agressão que esse sujeito teve em sua história pretérita; a criança do aqui e agora ocupa o lugar que um dia ele ocupou. Existe, então, para além da componente da fragilidade do menino, que serve à intenção geral de um pedófilo de realizar seu desejo sexual sem resistência, uma dimensão relacionada à homossexualidade e uma repetição invertida de uma experiência de abuso que o agressor sofreu quando criança.

EROTIZAÇÃO DA INFÂNCIA

"A sociedade brasileira erotiza muito a criança. Isso não é propriamente novo. A erotização da nossa vida social vem do século 19. A própria construção da modernidade brasileira, vem da idéia de que somos primitivos, de que manifestamos nossa vida sexual com muita intensidade. O que há de novo hoje é que, ao lado dessa condição de sexualização de adultos, que atinge também as crianças, é que elas, como sabemos, são expostas muito cedo, através da televisão e de outras mídias, a cenas de violência, inclusive sexual. O que eu quero frisar, porém, é que isso constitui um aspecto secundário do problema - que ocorre mais em função daquela transformação familiar a que me referi antes.

CIRCUNSTÂNCIAS SOCIAIS ADVERSAS

"Em famílias mais pobres, de favelas, de periferias das grandes cidades, a figura do pai muitas vezes nem existe; são famílias em que apenas a mulher trabalha. Assim, a criança, já sem proteção paterna, fica também sem o amparo materno e, freqüentemente, também sem o apoio institucional - de uma creche, por exemplo. Ora, as crianças de tal modo abandonadas ficam, é evidente, mais carentes. Então, qualquer adulto que se aproxime delas oferecendo algum tipo de carinho, de proteção que a própria condição social adversa não lhe permite, pode seduzi-la facilmente. Essa situação é, portanto, um facilitador para o pedófilo. Quanto mais precarizadas são as famílias, quanto mais desorganizadas elas são do ponto de vista sociológico, maiores as possibilidades de ocorrência dos abusos sexuais. Nós verificamos isso também nas famílias de classe média. O que acontece nelas? As crianças muitas vezes ficam com babás, com empregados - e é comum que sejam maltratadas e abusadas sexualmente por intermédio deles. Até porque, para as crianças, esses adultos representam autoridade e alguém que está lhes oferecendo 'carinho' - e é nessa condição que elas são usadas sexualmente, de modo perverso.

MEDO

"Muitas vezes, os pais, em especial a mãe, não levam em conta o que a criança diz; a queixa, a denúncia que ela faz cai, freqüentemente, por terra. É muito comum isso ocorrer quando o abuso partiu do padrasto, ou mesmo do pai da criança - não raro porque a mulher teme perder o marido (mais ou menos como acontece em casos de estupro e de violências domésticas). O silêncio também pode surgir pelo temor de estigmatizar não apenas a família, de um modo geral, mas em particular a criança. Isso pode acontecer tanto nas classes menos favorecidas como nas que estão mais bem colocadas na pirâmide social.

COMOÇÃO E NOSTALGIA

"Apesar de vivermos em um mundo marcado pela auto-exaltação desmesurada da individualidade, quando surgem notícias de abusos sexuais contra crianças costumamos assistir a uma reação de indignação da sociedade, uma comoção nacional. Existe aí o cruzamento de dois aspectos. Primeiro é que todos nós, quando uma criança é abusada sexualmente, quando ela é morta, nos sentimos identificados com essa pequena vítima. Há um tipo de matriz primária, originária do ponto de vista psíquico que faz com que nos coloquemos no lugar da criança. Por outro lado, a comoção também é um lamento raivoso, que fala da mudança do modelo da sociedade moderna para a pós-moderna. Nessa indignação existe uma espécie de nostalgia, uma vontade de que o modelo anterior fosse restituído. Não será. Mas há uma indignação que devemos restaurar: o valor do corpo infantil.

TRATAMENTO

"O analista tem de funcionar para o pedófilo como alguém que diz: 'Isso não pode'. É ele que vai apresentar interdições a esse sujeito que tem uma desestruturação psíquica que passa pela questão da identidade sexual. O pedófilo é atravessado por uma economia psíquica perversa, que vai se manifestar por meio de um objeto 'sagrado': a criança.

PASSAGEM DO MUNDO VIRTUAL PARA O REAL

"O pedófilo virtual pode, sem dúvida, vir a se transformar num pedófilo real. Se ele tiver obstaculizada a sua possibilidade de brincar de ser pedófilo virtual, vai passar ao ato e se transformará no pedófilo real. Como todos os perversos, o pedófilo é um ser bastante impulsivo, portanto, a possibilidade de passar ao ato real é muito grande."

Um comentário:

Cristina Benevides disse...

É nojento demais. Parece que esta ação se tornou comum como tudo no Brasil. Torturar mulher. Abusar de crianças. Desviar dinheiro público com mil ações fraudulentas no Congresso e em quase toda Brasília política. Precisamos reagir. Precisamos fazer um trabalho de formiguinha no que tange a votação dos brasileiros. O único acesso da população pobre que é a maior no Brasil só tem televisão para assistir, se informar e a televisão é só novelas, novelas e novelas.