Existiu um tempo em que se ensinava processo penal. Há mais de um século, o aluno de Direito aprendia que o processo criminal se vinculava ao direito constitucional e, portanto, as normas processuais tinham de ser interpretadas a contar de princípios e regras da Lei Maior (clique aqui).
O passar dos anos consumiu a simplicidade da lição. Criaram-se, assim, teorias artificiais para explicar, por exemplo, a aplicação da prisão cautelar. Trocou-se a certeza quanto à liberdade ser a regra e a prisão a exceção, pela fórmula abrangente da pretensa aplicação dos critérios de cautelaridade do perigo da demora e da fumaça do bom direito.
Antes a convicção dominante era a liberdade estar protegida pelo sistema jurídico. Logo, alguém só poderia vir a ser preso no curso da persecução penal, caso o juiz criminal fundasse a decisão cautelar em fato concreto e em razão legal de prender antecipadamente o inocente.
Hoje, ao invés de se exigir a clara motivação judicial, se aceita a vagueza da repetição de lugares comuns como ordem pública. E, os crimes tornaram-se etiqueta indicativa de gravidade social (v.g., crime hediondo) e causa autônoma da pretensa necessidade de prisão processual.
A fragilidade da doutrina facilitou a prática das arbitrariedades. Prender alguém sob o fundamento da aparência do bom direito é muito mais fácil do que descortinar o fato e encontrar previsão legal que justifique a prisão cautelar.
Portanto, não sem razão os antigos valorizavam a relação intrínseca entre processo penal e Constituição. Eles almejavam incutir na cabeça dos juízes que a prisão deve ser compreendida como exceção e, por conseqüência, necessitam, suas normas jurídicas, serem interpretadas de forma restritiva.
Ora, a perda de referencial quanto à técnica jurídica de aplicação da prisão cautelar é a causa direta da exacerbação de prisões, antes do trânsito em julgado das sentenças condenatórias. Prende-se para obter confissões no inquérito policial, por meio da prisão temporária. Prende-se para impedir o exercício da defesa, mediante a prisão preventiva. Prende-se para dar exemplos à sociedade na prisão da sentença. Prende-se para se mostrar juiz "independente e popular", graças à "coragem" de prender os ricos.
Quer dizer, sumiram os motivos legais para a decretação de prisão processual e passaram a predominar discursos políticos, argumentos psicossociais, assim como idiossincrasias de pessoas que deveriam agir, em nome do Estado, de modo imparcial e consoante a letra da lei.
Os abusos judiciais advêm da contribuição nefasta da mídia, porque os jornalistas se mostram incapazes de ver na prisão cautelar indevida a perpetração de uma violação à dignidade humana. Eles perderam a noção do humano e se regozijam com o escárnio dos presos, ricos e pobres. Não se envergonham de filmar e fotografar a prisão, nem pensam antes de propalar a suposta igualdade social de prender também os ricos. Não enrubescem ao tornar heróis, nas notícias, juízes que não cumprem a lei.
Resta a esperança naqueles que preservam a cultura do passado, pessoas impermeáveis ao discurso reacionário do nosso tempo que têm de se unir para voltar a pregar o respeito à Constituição, como alicerce para o estado de Direito.
O processo penal constitui instrumento da liberdade contra o arbítrio estatal, ensinava um falecido professor do Largo de São Francisco. Seria melhor repetir aos alunos o ensinamento tradicional a se fingir de moderno sem lhes explicar o porquê se lê no jornal de hoje a descrição de outra prisão cautelar de inocente, constitucionalmente inocente.
Antonio Sergio A. de Moraes Pitombo
Do Migalhas
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